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A autopoiese pornográfica vivida pela Geração Y

Texto Castiel Vitorino

A ascensão da pornografia desencadeada a partir da década de 1990 aconteceu concomitantemente ao processo de surgimento e popularização da World Wide Web . Com a instauração da Internet 2.0, na primeira década do século XXI, o mundo offline sofreu ataques conscientes do ambiente cyber, e teve suas fronteiras de tempo e espaço diluídas, provocando mudanças ou ao menos questionamentos a conceitos como “realidade” e “mundo real”. Hoje, reconhecemos que o reinado do instantâneo e do efêmero foi iniciado entre os veículos de comunicação de massa e em relações interpessoais (Baumam, 2003).

 

Cena do filme Shame (2011), dirigido por Steve McQueen. 

 

A indústria pornográfica acompanhou graciosamente esses desdobramentos sociais, e atualmente apresenta-se fortemente interlaçada ao ambiente virtual. Ela assume o papel de uma planta parasita, que enxerga a internet como uma árvore capaz de lhe auxiliar no alcance de elementos essenciais para manter-se viva (consumidores). Ou seja, a pornografia tornou-se virtual e democrática; em sentido de acesso e não de conteúdo, visto que este obedece apenas a interesses de determinados grupos masculinos. Então, é possível apontar mudanças nos modos de se consumir esses conteúdos, e a Geração Y (que também pode ser chamada de Millennials) é a responsável por elas. Portanto, pensar em como esses jovens tem modificado a indústria pornô, e de qual forma eles também estão sendo influenciados por ela, é valido e necessário. É preciso refletir em como produzimos e somos produzidos pela pornografia contemporânea.
Seguindo a lógica de Jorge Leite Jr (2011), a pornografia será aqui classificada como um conteúdo que apresenta um padrão de representação do obsceno (seja em sons, imagens, textos ou objetos) que obedece a um mercado audiovisual fundamentado exclusivamente na ideia de ter lucro através da excitação dos seus consumidores. Na pornografia, há uma capitalização do sexo ao mesmo tempo em que este integrasse na categoria de diversão.

 

 
Ilustração por Miguel Jiron para Medium.com (The Overhyped,Unsexy Reality of Virtual Porn

 

A pornografia é um fenômeno cultural ocidental surgido na metade do século XIX, que teve a modernização das máquinas fotográficas como uma das dinâmicas responsáveis por criar um ambiente fértil para o seu desenvolvimento. Naquele contexto, o mundo consumia pornografia através de fotos impressas e em livros de ilustrações ou de contos eróticos. Já no final daquele século, surgem os cinemas, que junto com a invenção e popularização do videocassete (criado décadas depois), durante os próximos 100 anos fez surgir diversas celebridades pornográficas, como aconteceu com Linda Lovelace e Cicciolina. As fitas VHS mostraram-se como um grande passo ao que hoje os consumidores vivenciam no mundo pornô: liberdade. Isso significa que pornografia contemporânea nos oferece diversas formas de ferirmos o pudor. Ao acoplar-se com a internet, ela nos tirou da zona de conforto de telespectador, e nos transformou em agentes ativos desse sistema. O sofá da sala que há duas décadas era usado para assistir um filme pornô, hoje pode ser facilmente transformado em um palco onde o até então telespectador assume a persona de astro pornográfico. Talvez nesse show/cena/fotos, ele também poderá usar objetos fálicos comprados pelo mesmo veículo pelo qual se mostra para o mundo: a internet. Tudo isso anonimamente.

 

Somos os jovens mais plurais da historia, e não nos contentamos com o papel de voyer vivido pelos nossos pais. Queremos ser protagonistas de nossas fantasias sexuais. (Cavadas, 2015)

 

Desfile outono-inverno 2016 Felipe Fanaia. 

 

O movimento de produzir e consumir materiais eróticos nunca aconteceu de maneira tão rápida e orgânica quanto em 2015, tendo em vista, por exemplo, a popularização de autorretratos onde se mostram seus órgãos sexuais, em parâmetros nacionais; as chamadas nudes. Contudo, as semi-nudes (fotos sensuais que não mostram o que hegemonicamente entende-se como áreas de prazer) apresentam-se justamente como um questionamento sobre comportamentos, pensamentos e desejos que a pornografia criou e ainda alimenta. As semi-nudes falam de repensar e de redescobrir as áreas de prazer corpo humano. O dualismo pênis-vagina é posto em segundo plano, e membros como braço, boca, nariz e orelha assumem o protagonismo no momento da sedução. Entretanto, essa visão ainda é insignificante ao lado da indústria pornográfica, pois a pornografia é um fenômeno que gira em torno de práticas de desumanização que ainda constituem o pensamento ocidental.

 

Em julho de 2015 o cantor canadense Justin Bieber publicou em seu Instagram uma foto pelado. Após toda a repercussão na internet, o astro pop decidiu excluí-la devido ao constrangimento causado a filha de um amigo. 

 

Não há possibilidade de fazer uma dissociação entre essas praticas e pensamentos. Com isso, todos os conteúdos que se propõem a mostrar uma nova visão do obsceno – como acontece com algumas semi-nudes –, onde o corpo humano é respeitado, são essencialmente contrários à pornografia e consequentemente movimentos fracos. Um filme pornô caseiro com determinado conteúdo, pode alcançar facilmente um impacto semelhante a outro feito por uma grande produtora, no sentido de reforçar contingências machistas, racistas e LGBTfobicas. Minha geração não está isenta desses consensos, pois ela foi criada através deles. Somos fortemente capazes de reproduzi-los e também de ir contra a essas reproduções, entretanto a direção contraria em nenhum momento deve ser vista como um caminho para a pornografia, porque ela almeja justamente uma destruição desse espaço midiático. Um espaço onde se fabrica estrelas pornôs, como foi o caso das duas mulheres citadas outrora, através de chantagem, manipulação, estupros, embriaguez e o uso de drogas não consensuais. Esses dados não são divulgados, pois:
“Numa sociedade como a nossa são bem conhecidos, é certo, os procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que não é qualquer um, enfim, que pode falar de qualquer coisa.” (Foulcault, 1971/1997, p. 10).
Reconhecendo a mentalidade líquida e coletiva presente entre essas pessoas, e ainda usando os estudos da autora, a ideia de “singularidade sexual” mostra-se quase impossível de ser pensada. Concluo então que inicialmente estamos vivendo uma nova “multiplicidade sexual” promovida pelas novas tecnologias da informação. Se a indústria pornográfica está sendo cada vez mais questionada, isso se deu a indagações posteriores sobre o que entende-se ser sexo, que por sua vez só foram desencadeadas por discussões feministas, étnico-raciais e tecnológicas; como pode ser visto no livro Manifesto Contrassexual, do filósofo Paul Beatriz Preciado (2014).
Se hoje debatemos sobre a criação de realidades hibridas de virtual e real, conclui-se então que estas estão sendo conscientemente experimentadas. Se o múltiplo está sendo reconhecido e ainda mais alimentado, diversas maneiras de se fazer sexo começam a ser legitimadas e criadas. Pensar que a indústria pornográfica não continuará reinventando-se e sobrevivendo sobre essas transformações é aceitar a mentira de que não estamos em um amplo e constante processo de transformação. Toda a juventude causa naturalmente mudanças socais. Ela representa o novo. Mas ela também carrega consigo um histórico da humanidade impossível de ser ignorado. A juventude Z consome muito mais pornografia do que as que lhe antecederam, contudo somos também os que mais se posicionaram contra a esses materiais, até o momento. Atingimos e somos atingidos. Produzimos e somos produzidos. No fim, nosso grande desafio talvez seja continuar não naturalizando essas relações.
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