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Do Editor: O fenômeno da mudança

Uma nova coluna no site, centrada no desacelerar, no despertar da consciência e na busca por novos caminhos, mostrando que o fenômeno da mudança pode começar por nós mesmos…

A Cartola nasceu com a proposta de trazer moda masculina, arte e até filosofia em diversas linguagens, apresentando o homem moderno sob um olhar diferenciado, questionador e artístico. Uma revista para os amantes das artes e do conhecimento. No entanto, na correria e adaptação ao mercado um pouco disso ficou no caminho… O fato é que hoje tudo está centrado no tempo, e as revistas, jornais, sites, semanas de moda e redes sociais têm sido como rolos compressores de informação para garantir que o ciclo do mercado continue vivo. Como a principal função dos rolos é nivelar terrenos, a tendência é que, para auxiliar na otimização do tempo, as diferenças (inclusive as de formato de conteúdo) sejam poucas e a comunicação seja o mais breve possível. Mas podemos mudar, desacelerar, traçar novos caminhos e ser a diferença.

Esse é o principal motivo desse novo espaço, com mais informação escrita sobre moda, arte e cultura. Quero que seja um espaço interativo e aberto a sugestões e novidades. Para isso, meu Instagram e o da revista estão abertos para receberem sugestões, discussões, críticas, elogios, reclamações ou declarações de amor, e assim vamos moldando a coluna, deixando-a bem ao gosto do público!

May Parlar ©

O fenômeno da mudança

A moda pode regular formas de se vestir numa sociedade, tanto que a origem da palavra vem do latim modus e significa “modo” ou “maneira”. No entanto, apesar dela e o vestuário caminharem lado a lado, possuem significados distintos. Para melhor compreender esse fenômeno, primeiramente é preciso distingui-lo. Como afirmou Marcelo de Araujo em seu livro “Dom Pedro II e a Moda Masculina na Época Vitoriana”, pode-se falar de vestuário, indumentária, roupas ou trajes, aqueles que possuem continuidade no tempo e demonstram sujeitos e fazeres, como os uniformes. A moda, por sua vez, refere-se ao fenômeno sociocultural e mercadológico, à produção e ao desejo pelo efêmero que movimenta o mercado desde meados de 1300, com o mercantilismo. Toda moda faz parte do assunto indumentária, mas nem toda indumentária é moda.
Moda é comunicação e consumo, e por esse motivo tem importante relação com o tempo e a memória de um povo. Mas esse fenômeno não pertence a todas as épocas, nem a todas as sociedades. Durante grande parte da história da humanidade o homem se desenvolveu sem as características da moda, como o culto do simulacro, das novidades e da temporalidade efêmera. Apenas a partir do final da Idade Média foi possível reconhecê-la como fenômeno e sistema. Isso porque, com a ascensão da burguesia e o desenvolvimento das cidades, os indivíduos ficaram mais próximos da área urbana e da vida das cortes, estimulando o desejo de simulacro. A burguesia, com o crescimento de seu poder na sociedade, passou a copiar as roupas dos nobres, e em uma tentativa de diferenciar-se, os nobres reinventavam suas roupas, fazendo funcionar um ciclo que deu início ao sistema da moda. A partir daí, em cada período da história, ela assumiu o papel de operador chefe das mudanças nos modos de vida em sociedade, mas seu modo de operação, junto com as instituições que relacionam, mudam com o tempo. Atualmente, ela ainda é definida pelos mercados de consumo.
Chanel FW 2014 – o supermercado Chanel
Nas últimas décadas, tem-se visto um grande desenvolvimento tecnológico com amplos processos industriais têxteis no mundo inteiro (Indústria 4.0), proporcionando capacidade de produção ilimitada com o objetivo de incentivar o consumo para a maximização do lucro e do crescimento econômico em curto prazo, influenciando toda a cadeia de moda independente de sua localidade. Esse acelerado ritmo de produção e consumo faz com que a roupa – célula básica do fenômeno da moda – seja vista apenas como um produto da cultura de massa, podendo incentivar a homogeneização cultural a nível global. Isso é assustador!

 

Canclini, em seus estudos sobre consumo, fala que esse modelo de produção (fast fashion) em diferentes localidades faz com que a roupa perca a relação de fidelidade com os territórios originários, realizando a apropriação de processos socioculturais e o uso de produtos fora de seu contexto de criação. Não quero chegar à discussão sobre apropriação cultural (?), apenas afirmar que a roupa, como célula básica desse fenômeno, deveria carregar símbolos, modos de fazer e identidades que façam sentido para quem veste. Novamente digo: moda é comunicação. Mesmo que a roupa não defina a complexidade de um ser humano, ela nos diz muito sobre quem veste, porque o consumo não se dá apenas do produto, mas também dos ideais e processos que foram incorporados a ele.

 

Já parou para pensar o quanto esses aspectos de produção e consumo da moda influenciam nosso comportamento? Flesser diria que é possível reconhecer os homens por suas fábricas. E ele está certo. Os modelos de produção estabelecidos por elas dão origem a uma série de padrões mentais e comportamentais que são reproduzidos na sociedade. Automatização, aculturação e busca pelo “exótico” na moda; Tinder como um supermercado de pessoas; culto ao simulacro digital… Tudo rápido e líquido, não só na moda.

 

Felizmente, paralelo ao fast fashion, surgem outras formas de produzir e consumir com o objetivo de encontrar soluções para problemas gerados pelo atual sistema. Vejo cada vez mais marcas voltadas à regionalidade, colaborativas e sustentáveis, e isso pode ser parte do Lowsumerism – movimento que tem como proposta o despertar da consciência e a diminuição do consumo.

Associado ao movimento, o slow fashion veio defendendo a criação de peças atemporais, de design autoral, colaborativo, sustentável e cujos processos de produção sejam mais artesanais e humanos. Além disso, acredita na reutilização dos produtos, desde o compartilhamento entre amigos e familiares, upcycling, conserto e a compras e vendas em brechós. É, portanto, uma alternativa de diminuir os impactos do consumismo.

A mudança pode parecer contraditória: Como pode a moda, que sempre incentivou o consumo, comece a abraçar novas alternativas que acabam gerando menos consumo? Há quem diga que parte disso vem do próprio despertar de consciência do consumidor, mas eu ainda encaro a “mudança” com bastante desconfiança e com olhos de coruja. Digo isso porque o próprio mercado pensa como será redistribuída a força de trabalho. É preciso ficar de olho, e principalmente compreender como as marcas vêm incorporando isso em seus marketings e utilizando como estratégia de venda. Mais do que uma tendência de ser “consciente” ou “sustentável”, é uma questão de responsabilidade.
A moda é o fenômeno da mudança, da busca pelo “novo”. Mas essa mudança mais do que nunca deve começar por nós mesmos, abraçando modelos mais conscientes e sustentáveis além do sistema.
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