“(…) logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do ópio e outras maléficas, a fim de imitarem os príncipes da Renascença – já se viu! – correm às exposições e compram os quadros a preço de ouro, enquanto os pobres diabos naturais ou vivendo na Bruzundanga, que são conscienciosos do seu mister, morrem em ofícios humildes ou de sodka.”
por Rafael Oliveira
Com essa passagem acima o jornalista e escritor Lima Barreto (1881-1921) reportava como era encarada a arte na República dos Estados Unidos da Bruzundanga. Os Bruzundangas é uma caricatura da sociedade brasileira do início do século XX, carregada de cores fortes sobre diversos aspectos econômicos, sociais e culturais que se apresentavam na recém-nascida república. A obra, com grandes doses de ironia, reconstrói um Brasil refém de uma categoria social, desvalorizadora do popular, do nativo, que não se afasta muito do cenário atual, apesar da distância temporal e das conquistas. O destaque para esse trecho da obra não se faz sem nenhuma intenção. Conjunto de práticas, técnicas, símbolos e valores de dados grupos sociais, a cultura por muito tempo era encarada como fator de diferenciação de classes e a educação.
Por vezes grafada de forma impositiva com inicial maiúscula, a cultura passou a ganhar como função a progressão social de uma pretensa burguesia ávida pelo conquista de mais espaços políticos e poder, que viam por intermédio dela uma possibilidade de alçar posições de destaque na sociedade, trabalhando, com isso, para manutenção de um status quo. Fenômeno esse iniciado em uma Europa no auge da Revolução Industrial e que se replicou em outras espacialidades.
Nessa perspectiva, como apregoado por Lima Barreto, a cultura se percebe num nível superior, quase divinizada, reservada à poucos e apenas à esses, se por berço ou se por posses, era concedida a “salvação”. A salvação, ou a cultura, estava associada ao consumo de produtos que lhe eram próprios e dentro de um lugar comum: obras de artistas de renome, europeus e que garantisse destaque entre seus pares. Aos mortais apenas era reservado o popular, o menor, o pequeno, o que não era sagrado, a “sodka”, por sorte a reprodução em massa.
Para além da garantia de um lugar nesse panteão e “ao sol”, ou mais próximo dele, numa sociedade estratificada a cultura era – e ainda é – utilizada para a criação de outros espaços, objetivando, sobretudo, o controle social. Recorrentemente na história da humanidade regimes políticos de caráter totalitário, autoritário ou democrático, este último à la despotismo esclarecido, fizeram uso da lógica de uma cultura superior ou de elite, por vezes a construção de uma cultura nacional, em favor dos seus projetos. Atrelada a essa formulação de cultura outros elementos se somavam ao combo: a censura e a perseguição aos que subvertiam. Esse processo foi perceptível em incontáveis períodos e sociedades, aparentemente mais presente no breve século XX, a exemplo do nazismo alemão e da Ditadura Militar no Brasil.
Apesar das funções atribuídas a cultura nas linhas acima, percebemos que ela, mesmo sendo uma construção, é direito de todos. Longe da sua veste divina, superior e homogênea. Edward Shils, cientista social estadunidense, afirma que a cultura nunca é partilhada de maneira uniforme entre os membros de uma sociedade, ou seja, ela se faz plural e interativa tanto quantos forem os grupos e indivíduos que a formam, como numa teia. Recorrendo, ainda, a imagem sacra que se fez antes, alguns messias surgiram anunciando essa boa nova, a exemplo de Mário de Andrade. O escritor paulista já nas décadas de 1920 e 1930 nos trazia o entendimento de uma cultura ampla, que englobava o considerado erudito, popular, material, imaterial e tão diversa quantas forem os grupos presentes na sociedade, variando os produtos consumidos.
Comportamento Unclassed
Atualmente, mesmo que façamos uma releitura e nos identificamos com o relato de Lima Barreto nas suas incursões por Bruzundanga, nos direcionamos para uma sociedade cuja cultura se enquadra num comportamento Unclassed onde cada indivíduo se torna protagonista e não há mais a apropriação de uma cultura considerada de elite. Bauman localiza esse comportamento no âmbito de uma modernidade líquida, onde todos têm direito de expressão cultural, não mais submetidos a uma cultura superior, não mais engessada. Faz-se múltipla, mutante, liberta. Vem dos espaços antes considerados centros culturais, como a Europa, Estados Unidos e São Paulo, a confirmação de nossa liberdade. Estamos livres e não precisamos nos reverenciar ao panteão. Alguns componentes da sociedade, talvez, ainda permanecem como bruzundangas, mas no momento somos todos revolução. Somos revolução cultural, que faz cair por terra o engessamento da elite, do popular e da massa. Somos livres para (re)construir e consumir a cultura como quisermos.